O termo medicalização define o fenômeno em que um comportamento ou uma condição física ou mental passa a ser tratado como se fosse um problema médico, recebendo um rótulo de doença e opções de tratamento. Na última semana, o assunto ganhou as páginas do periódico British Medical Journal com um elegante artigo do jornalista australiano Ray Moynihan e ainda rendeu o editorial da editora Fiona Godlee.

 

O centro da discussão quando se fala em medicalização é a força da indústria farmacêutica nesse processo que impulsiona a sociedade civil, profissionais de saúde, órgãos do governo e a mídia a retroalimentarem a cultura de que todo organismo vivo da espécie sapiens, a princípio, deve ter alguma doença ou precisa de algum remédio. Todos esses atores têm seu papel na medicalização.

 

Nos EUA, a publicidade de medicações acontece de forma direta com os consumidores com inserções do tipo “Se você está se sentindo desanimado, pode ser que o Depre-pill seja indicado no seu caso. Converse com seu médico sobre isso”. Calcula-se que cada dólar gasto em publicidade direta ao consumidor dê um retorno mais de quatro dólares em vendas.

 

No Brasil, a ANVISA não permite essa abordagem direta, e por isso, o trabalho das indústrias farmacêuticas junto aos médicos deve ser ainda mais intenso para alcançar as metas de vendas, pois são eles que estão na linha de frente do processo de medicalização, cara a cara com os pacientes. A publicidade dirigida aos médicos inclui as visitas de representantes para oferecer amostras grátis dos últimos lançamentos, propaganda de seus produtos em periódicos destinados à classe médica e patrocínio de eventos científicos.

 

A medicalização não para de crescer. Percebemos limites da normalidade de marcadores biológicos cada vez mais estreitos além de um crescente número de  novas doenças. O que não era diabetes agora se chama pré-diabetes. O que não era pressão alta, agora é pré-hipertensão. Transtorno de déficit de atenção que tinha que começar na infância, agora já se discute que pode ter seu início na vida adulta. Quase não existe mais tristeza. Qualquer sentimento parecido é encarado como depressão.

 

Grande parte dos médicos especialistas que fazem parte dos painéis que definem os critérios diagnósticos das doenças tem conflitos de interesse. Na definição do último Manual de Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM IV), 56% dos membros dos painéis eram ligados à indústria farmacêutica, e em alguns painéis, como a depressão, essa cifra chegava a quase 100%. E os conflitos de interesse não são só financeiros, mas também intelectuais, pois o médico pesquisador tem a tendência de querer proteger seus “filhotes científicos”. Uma política exemplar tem o Instituto Nacional de Saúde nos EUA, que não permite que nenhum médico que tenha conflitos de interesse com a indústria farmacêutica participe dos painéis decisórios, até mesmo aqueles que simplesmente já tenham declarado um posicionamento intelectual sobre a questão em consideração. O novo Manual de Diagnóstico de Transtornos Mentais DSM V está vindo por aí com novas doenças mentais. Vício na internet não deve ser incluído ainda, mas numa próxima edição poderá estar.

 

Os médicos devem estar conscientes do debate que envolva um diagnóstico polêmico e podem e devem deixar os pacientes conscientes também. Um dos últimos casos polêmicos foi o do diabetes gestacional, que pelos novos critérios diagnósticos de 2010, cerca de 20% das gestantes passam a receber esse diagnóstico. Além disso, o médico deve declarar quando há conflito de interesse quando prescreve uma medicação. Por que não?

 

É importante também levar em consideração que o processo de decisão daquilo que é doença e que não é doença pode ser muito mais rico quando a discussão não fica limitada apenas a médicos e cientistas. A sociedade civil e representantes de tantas outras áreas do conhecimento, como por exemplo, as ciências sociais, são muito bem-vindos nesse debate.

 

 

 

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